segunda-feira, 12 de abril de 2010

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CONFUSÕES

(Maio de 1973)

§ Mudar alguma coisa... para que tudo fique na mesma.


- Falaste com os teus pais? - Pergunta Mário – Sabes que lhes deves colocar a questão – continuou – se forem apanhados de surpresa ficam zangados e com razão, o melhor é mesmo teres uma conversa com eles.

Mário falava com a sua noiva Maria Carolina e entendia que esta deveria contar aos seus pais que o seu casamento não seria como o imaginado: muitos convidados, música, cerimónia religiosa com padre convidado e almoço no restaurante. Coisa habitual para quem ia casar. Coisa habitual para casamentos pela igreja… que, à época, eram todos. Ou quase!

- Está descansado, falo com os meus pais e eles irão entender a nossa vontade, não vai haver problemas – diz Carolina.

Mário tinha chegado há pouco tempo da guerra de África. Ainda não tinha passado um ano quando chegou ao Cais do Conde d´Óbidos, também conhecido por Cais da Rocha, a bordo de um grande barco que o tinha levado até à Guiné e de lá o tinha trazido dois anos depois. Andava confuso, sem vontades de muita coisa e com vontades de outras! Mas não sabia de quê!

Tinha regressado ao emprego e com este regresso, tentava retomar a vida que tinha antes da tropa. A mesma namorada, os mesmos caminhos, o continuar dos estudos, o mesmo estilo de vida. Mas não. A coisa não estava a funcionar. As coisas estavam diferentes na sua cabeça!

Muita coisa tinha mudado na vida de Mário. Deixara de acreditar em quase tudo o que tinha aprendido de menino, especialmente nas questões de religião.

Os vinte e dois meses de África deram-lhe outra visão do mundo. Na guerra, conhecera a dor, o luto, a hipocrisia, o poder de uns sobre outros. Convivera com a face negra da vida e conhecera a face macabra da morte e percebera que apenas uma coisa tem significado no mundo: o dinheiro, o poder que ele induz e a infelicidade que ele provoca. E o silêncio macabro de quem o acumula, religiões incluídas!

Um ano após o seu regresso, tudo isto lhe bailava na cabeça. Por vezes, a sua face alegrava-se, lembrando-se das coisas boas que vivera entre os seus camaradas de armas. As noitadas de copos no quartel, as jogatinas de cartas até às tantas da madrugada, as cantigas, cantaroladas por vozes desafinadas, altas e por vezes trémulas do álcool, com letras meio sabidas meio adivinhadas, numa tentativa de afastar medos, fantasmas e maus presságios. Mas logo após este flash de alegria dos bons momentos, vem-lhe à memória o mais terrível de todos na sua passagem por África: A morte a seu lado, do camarada de armas, seu lugar-tenente e companheiro de sempre. Companheiro do banco da escola e de quando, armando-se em Zé do Telhado, iam roubar fruta lá na aldeia, dividindo-a pelos mais medricas que ficavam à espreita para ver se o dono chegava, compincha na troca de namoradas dos namoriscos sem damas, cúmplice dos segredos de coisas banais que partilhavam quando lhes apareceram os primeiros pêlos púbicos e a voz lhes começara a engrossar. O seu companheiro de sempre, agora companheiro de armas e de infortúnio, morrera a seu lado, praticamente nos seus braços. Quis o acaso que fosse um e não outro. Tudo isto bailava na cabeça de Mário e o deixava infeliz, inseguro e cheio de interrogações. E a sua face, revelava isso mesmo; Tristeza!

É neste diálogo com Maria Carolina, sua noiva, que encontramos Mário, um ano após o regresso de África.

Uns meses antes, pensara em acabar o namoro, mudar radicalmente de vida, mas não sabia como. Ir para outro país, era uma ideia. Na aldeia, outros colegas o tinham feito. Dar o salto para um país da Europa, fugindo à tropa e fugindo à miséria, era um dos caminhos já conhecidos!

- Mas agora que já fiz a tropa e que já não há tanta miséria, que os ordenados estão melhores, não faz muito sentido deixar o país – pensava Mário – o melhor, é prosseguir os estudos e deixar-me ficar por cá.

Por cá, as coisas estavam melhores. No que toca a miséria e às dificuldades da vida, já não haviam tantas! E empregos haviam com facilidade e abundância!

O lugar da cadeira desocupada estava de novo ocupado e o senhor que se sentou nela, mudou alguma coisa para que tudo ficasse na mesma. Parece uma contradição, mas não!

Com voz mais fresca e segura, o novo dono da cadeira foi à televisão e ordenou:

- Para África e em força, toda a gente a defender a pátria!

Coxos, manetas, pernetas, ceguetas, magros, gordos, grandes, pequenos, muito pequenos, homicos[1] que não chegam ao balcão para beber uma caneca à homem, todos foram aptos para a tropa e a maioria acabava por ir combater em África. Da terra de Mário e das terras de outros mários. Os poucos que ficavam, os anafados, mesmo anafados de todo e que não serviam para a tropa, eram insuficientes para tanto trabalho. Com falta de mão-de-obra e com muita obra por fazer, os salários subiram em flecha e já não se justificava dar o salto para França, a não ser para fugir à guerra!

Ponderadas estas questões, Mário decidiu-se por continuar por cá. Desistiu da ideia de romper o namoro e nesta altura estava a falar com a sua noiva sobre a decisão tomada quanto ao casamento; Cerimónia simples, sem aparato, pouca gente e sem padre. Era uma bomba, a decisão! A sua noiva deveria falar com os seus pais, futuros sogros de Mário e este não queria confusões.



[1] HOMICOS – Termo usado quando se pretendia diminuir a personalidade de um homem ou quando este era demasiado pequeno.

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