segunda-feira, 12 de abril de 2010

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A SORTE DO ZEQUINHA

§ O mundo está perdido!

- Sabes amor, acho que estou grávida! Desta vez é a sério!

- Pois, o melhor é esperares para teres a certeza, ainda bates o recorde de gravidez e nada! – observa Mário, já habituado aos falsos rebates da esposa e às mudanças de humor, sempre que se julgava grávida.

O casamento tinha-se realizado alguns meses antes. Conforme o combinado. Pelo menos, em parte. Cerimónia simples, sem o foguetório habitual. E sem padre! E com muita confusão, muito choro e muita escandaleira na aldeia.

- Já sabes? – dizia Fatinha, uma das beatas à saída da missa – a Carolina do tio Manel dos Teixeiras amantizou-se e só nas vésperas é que contou aos pais que ia casar e que não casava pela igreja! Imagina tu, pessoa tão fina, sempre dada à igreja, que estudou em colégio fino, amantizou-se. Ouvi dizer que o seu pai lhe disse que antes a queria ver morta, imagina, pessoa tão fina! Quem diria!... O mundo está perdido!

- Mas a minha sobrinha, a Mélinha, estás a ver, a que estuda no Porto, a filha da minha imã Lucília, disse-me que foi convidada para o casamento e que foi no Registo-Civil, coisa simples e sem arraial – diz Letinha, a beata preferida do padre da aldeia.

- Está bem, está bem, vai dar ao mesmo, casar pelo registo ou amantizar-se é tudo a mesma coisa, vai dar ao mesmo – insiste a Dona Fatinha, beata de créditos respeitados e insuspeitos nas questões de mexericos – a culpa é destes moços que vêm das áfricas meios malucos. Dizem que vêm apanhados pelo clima, cá por mim, é por causa das pretas, metem-se com elas e chegam malucos! Sorte teve o meu Zequinha, coitadinho, é um amor! Teve uma doença esquisita e o senhor abade livrou-o da tropa!

É um amor, o meu Zequinha!

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TELEFONEMA

§ A lista de Schindler.

- A Berta da loja veio dar o recado... disse que o Augusto telefonou e que vem este fim-de-semana a casa e vai estar cá uma semana… parece que vai mudar de quartel, mas a ligação não estava muito boa e a conversa ficou a meio.

- Se calhar vem para ir para a África, não?

- Ò mulher, vira para lá essa boca! O rapaz ainda não tem tempo para ir para fora. Está apenas há três meses em Santarém e ainda tem que ir tirar uma especialidade. Só depois é que pode ser mobilizado, mas eu já estou a dar umas voltas para o livrar da guerra. Tenho é que arranjar cinquenta contos!

- Cinquenta contos?! E onde vais arranjar tanto dinheiro? E quem conheces capaz de livrar o nosso filho?

- Olha, o dinheiro não vai ser problema. Se for preciso, vendemos a cavada dos Aguins. Só em madeira fazemos 20 contos e trinta, vale bem a cavada. Quanto ao resto... deixa comigo. O meu irmão de Aveiro conhece muita gente!...

Este preocupado diálogo é entre João Marques e sua mulher Rosalina dos Carvalhos, pais do nosso Augusto Marques, que em Santarém dá o corpo ao manifesto, preparando-se para o que der e vier.

- O mais certo é mesmo irem todos para África. Pelo nosso filho, fazemos qualquer sacrifício – podia ouvir-se na casa de João Marques ou noutra qualquer, onde houvesse filho na tropa e tivessem posses para o livrar da guerra. Posses de dinheiro ou de valores.

- Da tropa não o livro, é quase impossível. O melhor é irem pelos pedidos dos padres, têm mais influência. Mas da guerra? sim, de certeza que o livro, conheço gente importante, que por cinquenta contos livra o teu filho da guerra.

Isto mesmo disse, dizia, por entre-dentes, o menino Arnaldinho da menina Luisinha, homem solteirão a caminho dos cinquenta, putanheiro e punheteiro a tempo inteiro, jogador com vício de casino nas horas vagas e chefe de repartição no governo-civil, nas horas de receber salário. Era uma figura respeitável, O Menino. Filho da senhora Maria Luísa, a Luisinha do Prior como era conhecida, ou simplesmente a Luisinha, como também carinhosamente era chamada pelas gentes da aldeia. Senhora na casa dos sessenta, mais perto dos setenta, passou grande parte da sua vida como criada do Prior. Era criada residente e a tempo inteiro e ao que parece, para todo o serviço. Não conheceu casamento e também não se lhe conhecia o pai do seu Arnaldinho. Um dia, perto dos vinte, moça viçosa e de boa aparência e olhar tímido, pegou na trouxa e abalou para a terra. O senhor Prior disse na missa que a Luisinha tinha adoecido e tinha ido para a terra para se pôr boa. Um ano depois, regressou à aldeia e com ela, trazia nos braços o seu Arnaldinho. Diziam as más-línguas que era a cara chapada do Prior. O Menino cresceu neste santo ambiente e, na idade de aprender as primeiras letras, desapareceu por completo da aldeia.

- Está a estudar. – dizia Luisinha.

Alguns anos mais tarde, por altura da Páscoa, apareceu de saias, já moço, bem parecido, ainda mais parecido até no andar com o senhor Prior e a puxar a libido às moças da terra.

- Então, o teu menino é quase padre? Está um belo homem! Que desperdício! – diziam as amigas mais próximas.

- Oh... ainda tem muito que estudar, ainda lhe faltam uns anitos, só tem dezoito anos e antes dos vinte e um, vinte e dois, não se ordena, mas vai ser um bonito padre, disso tenho a certeza.

No ano seguinte voltou novamente pela Páscoa e de novo vestido de batina e até fez sermão na missa!

- O rapaz tem jeito, parece um pregador – diziam envaidecidos os gentes da aldeia. - A terra vai ter um pregador famoso!

No ano seguinte do seguinte voltou à terra, agora sem sotaina e sem colarinho branco, mais moço, mais alto e ainda mais bonito, no dizer da Lindinha das Vessadas, moça da idade de Arnaldinho e sua companheira nas primeiras brincadeiras de criança ao senhor doutor. Não mais saiu da terra, O Menino. Só para passear. Por altura da inspecção militar, apareceu-lhe uma doença qualquer, complicada, coitado, e o Senhor Prior tratou-lhe do atestado médico com carimbo e selo branco e ficou livre da tropa. Empregou-se no governo-civil e hoje, chefe de repartição, aguarda a sua promoção a director.

Vemo-lo então, com toda a cautela a elaborar a lista de Schindler por cinquenta notas, coisa pouca para tão importante missão; A de livrar da guerra os filhos queridos das boas famílias!

- Por cinquenta contos, livro o teu filho da guerra – repetia em voz baixa, olhando para os lados, abeirando-se cautelosamente do potencial cliente à saída da missa.

- Sabes como é João, são várias as pessoas na coisa e um bocado a um, outro bocado a outro, lá se vai o dinheiro todo e esta gente está habituada a viver bem – rematava com ar desinteressado. - Então o teu filho está em Santarém? Fui eu mesmo que lhe entreguei as Guias de Marcha. Para ele e para o estudante, o António Daborda. Mas esse já está em Lamego num curso qualquer para malucos.

- Sim, o Augusto está em Santarém – disse o senhor João – parece que acabou agora a recruta e vem este fim-de-semana.

- E olha que vai bater com os costados em África – disse o Arnaldinho – aquilo por lá está bastante azedo, os jornais não falam, escondem a situação, mas eu é que sei.

Era isto mesmo que o tijoão estava a dizer à sua mulher Rosalina. Que estava a dar umas voltas para livrar o rapaz. Só não contou todos os pormenores, devido à delicadeza da coisa. O que mais lhe recomendara Arnaldinho, é que não comentasse com ninguém, muito menos com a esposa, mulher por quem ainda nutria em silêncio uma certa fantasia vinda do namorico envergonhado de adolescente e que aos quarenta e tais, a caminho dos cinquenta, ainda não tinha esquecido o quanto lhe mexia com a libido:

- Não contes nada à Rosalina, senão ainda acabamos com a pide às pernas e olha que esses tipos não são flor que se cheire – recomendava Arnaldinho, conhecedor das artes da polícia que actuava à civil – sabes como são as mulheres, não guardam segredos de nada!

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GUIA DE MARCHA

§ ..e não te armes em herói, rapaz!

- Fui à Junta da Freguesia ver o Edital. Vou assentar praça em Abril, vou para as Caldas e tu vais para Santarém – diz António a Augusto – o senhor abade anunciou na missa que já estavam afixadas as incorporações e dei um salto à junta de freguesia para ver. Vou no dia 25 para as Caldas da Rainha e tu vais para Santarém, mas não fixei o dia.

- Ah, está bem, obrigado – diz Augusto – de tarde passo na Junta para ver. Depois combinamos e vamos os dois na segunda ou terça-feira ao governo-civil buscar as Guias de Marcha.

Era um domingo por hora do jantar[1] e António tinha ouvido a notícia na missa da manhã. O senhor abade tinha lido na homilia. Augusto, moço de poucas missas, tinha ido pescar e desconhecia a novidade. No entanto, não ficou de todo admirado, pois sabia que a coisa estava para breve. Outros da terra, colegas da mesma idade, já se apresentavam na missa de cabeça rapada e, vaidosos, vestidos de militares, falavam com entusiasmo do embarque para Angola. No adro da igreja, os mais entusiastas e gabarolas, rodeados da pequenada que lhes tocava com a mão como se fossem heróis dos filmes de cowboys, falavam das façanhas que iriam protagonizar:

- Quando lá chegar, vou dar cabo daquilo tudo. Vou dar cabo de todos aqueles turras! Vou partir tudo! – afirmavam.

- Então rapaz, ouvi dizer que tens data marcada para embarcares para Angola.

- Sim tio, vou embarcar no próximo dia dezanove! Para a semana passo lá por casa para me despedir.

- Está bem, está bem, não te armes em herói, rapaz! Olha que o teu pai precisa de ti! Sabes que lá em casa há muitas bocas para sustentar e o teu irmão não ganha nada de jeito! Não te armes em herói, tem juízo nessa cabecinha – repetia o tijaquim da tidiolinda, homem de bom senso, em vésperas do embarque do sobrinho.

Entusiasmados com a perspectiva de combaterem em África, defendendo a Nação contra os turras, António e Augusto tinham o desejo de irem juntos para a mesma província ultramarina.



[1] Na aldeia de António JANTAR era a refeição do meio-dia.

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CONFUSÕES

(Maio de 1973)

§ Mudar alguma coisa... para que tudo fique na mesma.


- Falaste com os teus pais? - Pergunta Mário – Sabes que lhes deves colocar a questão – continuou – se forem apanhados de surpresa ficam zangados e com razão, o melhor é mesmo teres uma conversa com eles.

Mário falava com a sua noiva Maria Carolina e entendia que esta deveria contar aos seus pais que o seu casamento não seria como o imaginado: muitos convidados, música, cerimónia religiosa com padre convidado e almoço no restaurante. Coisa habitual para quem ia casar. Coisa habitual para casamentos pela igreja… que, à época, eram todos. Ou quase!

- Está descansado, falo com os meus pais e eles irão entender a nossa vontade, não vai haver problemas – diz Carolina.

Mário tinha chegado há pouco tempo da guerra de África. Ainda não tinha passado um ano quando chegou ao Cais do Conde d´Óbidos, também conhecido por Cais da Rocha, a bordo de um grande barco que o tinha levado até à Guiné e de lá o tinha trazido dois anos depois. Andava confuso, sem vontades de muita coisa e com vontades de outras! Mas não sabia de quê!

Tinha regressado ao emprego e com este regresso, tentava retomar a vida que tinha antes da tropa. A mesma namorada, os mesmos caminhos, o continuar dos estudos, o mesmo estilo de vida. Mas não. A coisa não estava a funcionar. As coisas estavam diferentes na sua cabeça!

Muita coisa tinha mudado na vida de Mário. Deixara de acreditar em quase tudo o que tinha aprendido de menino, especialmente nas questões de religião.

Os vinte e dois meses de África deram-lhe outra visão do mundo. Na guerra, conhecera a dor, o luto, a hipocrisia, o poder de uns sobre outros. Convivera com a face negra da vida e conhecera a face macabra da morte e percebera que apenas uma coisa tem significado no mundo: o dinheiro, o poder que ele induz e a infelicidade que ele provoca. E o silêncio macabro de quem o acumula, religiões incluídas!

Um ano após o seu regresso, tudo isto lhe bailava na cabeça. Por vezes, a sua face alegrava-se, lembrando-se das coisas boas que vivera entre os seus camaradas de armas. As noitadas de copos no quartel, as jogatinas de cartas até às tantas da madrugada, as cantigas, cantaroladas por vozes desafinadas, altas e por vezes trémulas do álcool, com letras meio sabidas meio adivinhadas, numa tentativa de afastar medos, fantasmas e maus presságios. Mas logo após este flash de alegria dos bons momentos, vem-lhe à memória o mais terrível de todos na sua passagem por África: A morte a seu lado, do camarada de armas, seu lugar-tenente e companheiro de sempre. Companheiro do banco da escola e de quando, armando-se em Zé do Telhado, iam roubar fruta lá na aldeia, dividindo-a pelos mais medricas que ficavam à espreita para ver se o dono chegava, compincha na troca de namoradas dos namoriscos sem damas, cúmplice dos segredos de coisas banais que partilhavam quando lhes apareceram os primeiros pêlos púbicos e a voz lhes começara a engrossar. O seu companheiro de sempre, agora companheiro de armas e de infortúnio, morrera a seu lado, praticamente nos seus braços. Quis o acaso que fosse um e não outro. Tudo isto bailava na cabeça de Mário e o deixava infeliz, inseguro e cheio de interrogações. E a sua face, revelava isso mesmo; Tristeza!

É neste diálogo com Maria Carolina, sua noiva, que encontramos Mário, um ano após o regresso de África.

Uns meses antes, pensara em acabar o namoro, mudar radicalmente de vida, mas não sabia como. Ir para outro país, era uma ideia. Na aldeia, outros colegas o tinham feito. Dar o salto para um país da Europa, fugindo à tropa e fugindo à miséria, era um dos caminhos já conhecidos!

- Mas agora que já fiz a tropa e que já não há tanta miséria, que os ordenados estão melhores, não faz muito sentido deixar o país – pensava Mário – o melhor, é prosseguir os estudos e deixar-me ficar por cá.

Por cá, as coisas estavam melhores. No que toca a miséria e às dificuldades da vida, já não haviam tantas! E empregos haviam com facilidade e abundância!

O lugar da cadeira desocupada estava de novo ocupado e o senhor que se sentou nela, mudou alguma coisa para que tudo ficasse na mesma. Parece uma contradição, mas não!

Com voz mais fresca e segura, o novo dono da cadeira foi à televisão e ordenou:

- Para África e em força, toda a gente a defender a pátria!

Coxos, manetas, pernetas, ceguetas, magros, gordos, grandes, pequenos, muito pequenos, homicos[1] que não chegam ao balcão para beber uma caneca à homem, todos foram aptos para a tropa e a maioria acabava por ir combater em África. Da terra de Mário e das terras de outros mários. Os poucos que ficavam, os anafados, mesmo anafados de todo e que não serviam para a tropa, eram insuficientes para tanto trabalho. Com falta de mão-de-obra e com muita obra por fazer, os salários subiram em flecha e já não se justificava dar o salto para França, a não ser para fugir à guerra!

Ponderadas estas questões, Mário decidiu-se por continuar por cá. Desistiu da ideia de romper o namoro e nesta altura estava a falar com a sua noiva sobre a decisão tomada quanto ao casamento; Cerimónia simples, sem aparato, pouca gente e sem padre. Era uma bomba, a decisão! A sua noiva deveria falar com os seus pais, futuros sogros de Mário e este não queria confusões.



[1] HOMICOS – Termo usado quando se pretendia diminuir a personalidade de um homem ou quando este era demasiado pequeno.

PEDAÇOS DE VIDAS

Angelino dos Santos Silva

pedaços de vidas

romance

Contacto com o autor:

angelinosantossilva@gmail.com

Telem: 93720399

homenagens:

§ Aos Camaradas que partilharam os dias difíceis da Guerra de África!

§ Aos Camaradas que por lá deixaram uma parte de si : Os Mutilados!

§ Aos Camaradas que por lá deixaram tudo de si: A VIDA!

§ Aos Camaradas que regressaram mais velhos em anos, do que os meses que lá viveram e lá deixaram o melhor de si: A Saúde!

§ Às Vítimas desse Sentimento Egoísta e Mesquinho que dá pelo nome de Ciúme, hipocritamente confundido com Amor e desejar que o tema seja objecto de preocupação pela Sociedade e que o mesmo seja estudado com a Inteligência e a Urgência que o Tema merece!

dedicatória

a

Pedro e Sofia

Meus filhos

30 Abril de 2009

agradecimentos:

a

tina

ângelo

anamaria

dina

esmeralda

isabel

sem a vossa bondade, este romance

ficaria prisioneiro na cabeça.

30 Abril de 2009

A

Paulinha

minha querida sobrinha e afilhada, hoje falecida,

o meu agradecimento, já cheio de saudade.


O teu sorriso escondia a tristeza que te ia na alma.

Os teus passos percorriam o espaço que te fugia.

E o teu olhar, procurava de forma serena e calma,

Enganar a morte que dia a dia à porta te batia!


Descansa em paz!

22 de Setembro de 2009


ÍNDICE


I PARTE

Cap. Pag.

1. UMA QUESTÃO DE SAIAS

2. CONFUSÕES

3. GUIA DE MARCHA

4. A SORTE DO ZEQUINHA

5. TELEFONEMA

6. CONVERSÃO DE LETINHA

7. ARREPIOS

8. CABELOS E CHEIROS

9. ENCONTROS

10. A MINHA IRMÃ, DISSE-ME

11. SUAVE BRISA

12. ESQUECIMENTO

13. PESADELO

14. ESCRITORA

15. DECISÃO

16. PAZ PODRE

17. SURPRESAS

18. SÓ PODE SER ISTO

19. BOAS VINDAS

20. REUNIÃO

21. DURMAM BEM

22. INTRANSIGÊNCIA

23. SORTEIO

24. O FIO DA MEADA

25. ENCONTRO

26. DECISÃO

27. QUASE FIQUEI SEM PELE

28. MUDAR DE TRANSPORTE

29. FRUTO PROIBIDO

30. AVIÃO SEM MALA

31. DOR DE BARRIGA

32. JUAN GUTIERRES

33. O MENINO

34. DINHEIRO DE GRILO

35. RESPIRAR FUNDO

36. UM SONHO

37. MONÓLOGOS

38. CRUELDADE

39. REGRESSO

40. CRUELDADE

41. CARTA A GARCIA

42. ACHINCALHO

43. METE A LÍNGUA

44. REFRESCAR AS IDEIAS

45. A GUERRA NÃO FOGE

46. TRISTE NATAL

47. AQUELE OLHAR

48. TENHA JUÍZO

49. MAMÃE NÃO CHORES

50. PODE SENTAR-SE


II PARTE


Cap. Pag.

1. ATÉ AO MEU REGRESSO

2. IR À BRUXA

3. TOP SECRET

4. NÃO PERCEBO

5. DATA MARCADA

6. FALSA , NÃO COMO JUDAS

7. DECIDIR DA HISTÓRIA

8. PEDAÇOS DE VIDAS

9. SERIA DO FRIO?

10. RIR PARA DENTRO

11. CAIS DE PARTIDA

12. JÁ TE COMI

13. MELHOR CAMA

14. AS PÉROLAS

15. É ASSIM QUE NOS TRAMAM

16. SABES, AMOR?

17. A BRISA DA INCERTEZA

18. SIMPLES, NÃO É?

19. PIDJIGUITI

20. ASSALTO FINAL

21. ESTIVE EM AFRICA

22. PORQUÊ?

23. ESQUISITO

24. ESTOU-ME NAS TINTAS

25. O PILÃO

26. A CORJA

27. BULA

28. VAMOS LAVAR ROUPA

29. SE NOS APANHAM

30. PEÕES DE BREGA

31. SANTUÁRIO

32. MENTIRA

33. VOZ CELESTIAL

34. VOZ ELOQUENTE

35. GUERRA PSICOLÓGICA

36. NÃO ME DEIXAM

37. LÁGRIMAS DE MACACO

38. CHORO

39. DOMINGOS DJALÓ

40. CRIANÇA FELIZ

41. MADRUGADA TROPICAL

42. CAIM NÃO MATOU

43. VIAGEM AO SUL

44. DEFENDER A VERDADE

45. MORTE FORA DE HORAS

46. INQUISIÇÃO

47. REGRESSO AO NORTE

48. DESCONTROLO

49. MORTE PELA METADE

50. BESTAS EM DESASSOSSEGO


III PARTE


EPÍLOGO

Pag. NOITE AO LUAR



0

Esta é a história de António Daborda e Augusto Marques, gente simples de um Povo que ao longo dos tempos construiu com o seu esforço e sua ambição um País, mas que nunca soube ou foi incapaz de reivindicar o seu nome e lugar na História.

- Sabe, Padre – diz António para o seu Capelão – a nossa desgraça começa na Grande Aventura que foram os Descobrimentos. Preguiçamos o cérebro perante a grandeza da Coisa! Somos um Povo, que aceita sem sentido crítico, que lhe seja ensinado que a História é feita por heróis afonsos, gamas, pereiras e oliveiras. Nunca reivindicamos o nosso nome e lugar na História.

Frustrados por terem sido impedidos de sair do navio e obrigados a permanecer ao largo no Porto de Funchal no dia 31 de Dezembro de 1971, com o argumento de que poderiam causar incómodos aos turistas, em noite de festa de fim de ano!

- Veja Padre – diz António – somos dois mil homens a bordo e não somos capazes de reivindicar o respeito e o reconhecimento que merecemos. Que merecem os nossos Camaradas que por lá deixaram tudo de si: A Vida!

Esta conversa teve lugar a bordo do navio que trazia de regresso a casa, António Daborda e seus camaradas, após dois anos de guerra em África!

É a história de Mário Oliveira e Maria Carolina, sua esposa, pedaços de vidas de qualquer um de nós, que deveriam ser simples, alegres e descomplicados e que são transformados em episódios de vidas difíceis e infernais, provocadas por obsessões esquizofrénicas, invejas e rancores e por gente sem ética e sem princípios que se aproveita da miséria e da besta que em todos nós mora, para se promover socialmente!

Em tribunal, Mário diz:

- Há pessoas incapazes de gostarem de alguém.

Olham-se ao espelho e vêm-se narcisos.

Para além do seu umbigo, o mundo é um caos.

Têm como filosofia, primeiro eu, segundo eu e terceiro…eu e quem não é por mim é contra mim.

Só os bajuladores têm assento na sua mesa.

E quando o efeito narcótico entra em ressaca, voltam ao reflexo e nele, convencem-se, uma vez mais, de que são únicos!

Normalmente, acabam em depressão.

Acredito que a minha ex-esposa pertença a este grupo.



1

UMA QUESTÃO DE SAIAS

(Abril de 1969)

§ Não sei, se calhar é por não casarem.

- Então e agora?

- Agora, conserta-se a cadeira e senta-se outro nela e fica tudo na mesma – diz António Daborda.

Quem pergunta é Augusto Marques, moço da idade de António e ambos em idade da tropa.

As perguntas vêm de pequeninos. Amigos de sempre, Augusto habituara-se às respostas de António, tomando-as como certas.

- Como é que sabes isso? – Perguntava Dona Rosalina dos Carvalhos ao seu menino Augustinho.

- Disse o António! – e pronto. Era lei!

- E porque é que o senhor abade anda de saias e os outros homens não? - perguntava Augusto, nos seus sete anos de inocência aos sete anos de ciência de António.

- Não sei, se calhar é por não casarem. A minha mãe diz que os padres não podem casar e não podem ter filhos, se calhar é por isso!

- Mas as mulheres andam de saias e têm filhos, não vêm da cegonha, como diz o Hélder da tijaquina, vêm da barriga das mulheres, que eu espreitei a minha mãe com a barriga cheia e pernas abertas a gritar para ter a nossa Rosa!

- Sim, sim, eu sei, a minha mãe já me contou que os bebés nascem da barriga das mulheres, mas os padres não podem ter filhos... se calhar é por isso.

- Pode ser, mas o meu pai diz que o senhor Prior, o outro senhor Abade que se foi embora da nossa terra, tinha um afilhado que era filho dele e da criada. Eu pensei que a criada era a mulher dele!...

Este interessante diálogo sobre questões de saias foi anos atrás, tempos de meninos da primária, entre António Daborda e Augusto Marques. Diálogos, perguntas e respostas que se prolongaram pela mocidade fora. Hoje, homens feitos, lâmina na cara, mancebos prestes a iniciar o serviço militar, o tema é mais sério, embora se trate de uma simples queda de cadeira. Uma queda, que podia ter mudado muita coisa… e que não mudou!

António desconfiava que não e por isso, à incerteza de Augusto, responde com a sua certeza desconfiada:

- Agora… senta-se outro nela e fica tudo na mesma! A única coisa que muda para os jovens como nós, é que daqui a alguns meses estaremos a combater em África – acrescenta – e provavelmente iremos para sítios diferentes!

Resposta dada, resposta aceite. Augusto sempre dera como certas as respostas do António e não era agora que iria duvidar do seu amigo, mais a mais, estudante. Estudante, dos poucos da sua aldeia cujos pais tiveram a ousadia e desfaçatez de mandar filhos de pobres estudar na grande cidade capital do distrito! e, ao que dizem, muito aplicado. Disso não duvidava Augusto Marques que tinha bem presente os desenrascanços que o seu amigo lhe proporcionara na primária, quando apertado pelo professor, figura severa e implacável, surdo que nem uma porta, mão peluda, grossa, que mais parecia pata de elefante e que sem aviso prévio, sacudia com um pesado safanão as frágeis cabeças dos mais distraídos, deixando-as aturdidas, Zum zum, sua bestinha quadrada, já devia ter respondido.

Ainda não tinha acabado o zum, zum, sua best… já a pata de elefante tinha sacudido a frágil cabeça do distraído, que era distraído por não saber a resposta. Nestas alturas, Augusto, que morava ao lado na carteira de António, seu companheiro de classe, tentava adivinhar a pergunta do surdo professor e com o cotovelo, perguntava a António a resposta para pergunta adivinhada e, deste modo, tentava safar-se do terramoto sobre a sua confusa cabeça. Variadíssimas vezes este expediente resultou. Outras, não!

Agora, na idade de mancebos, em vésperas de ingressarem na tropa, os jornais falavam da queda. Timidamente. E Augusto quer saber coisas.

- Então, achas que fica tudo na mesma?

- Claro, vais ver que sim, continuas a trabalhar nos campos com o teu pai, eu continuo a estudar, a guerra nas províncias ultramarinas continua e nós vamos para a tropa quando nos chamarem e de certeza que vamos lá bater com os costados. Pena é que, provavelmente, não iremos para o mesmo sítio, mas até pode ser que sim, que nos encontremos lá por África.