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A SORTE DO ZEQUINHA
§ O mundo está perdido!
- Sabes amor, acho que estou grávida! Desta vez é a sério!
- Pois, o melhor é esperares para teres a certeza, ainda bates o recorde de gravidez e nada! – observa Mário, já habituado aos falsos rebates da esposa e às mudanças de humor, sempre que se julgava grávida.
O casamento tinha-se realizado alguns meses antes. Conforme o combinado. Pelo menos,
- Já sabes? – dizia Fatinha, uma das beatas à saída da missa – a Carolina do tio Manel dos Teixeiras amantizou-se e só nas vésperas é que contou aos pais que ia casar e que não casava pela igreja! Imagina tu, pessoa tão fina, sempre dada à igreja, que estudou em colégio fino, amantizou-se. Ouvi dizer que o seu pai lhe disse que antes a queria ver morta, imagina, pessoa tão fina! Quem diria!... O mundo está perdido!
- Mas a minha sobrinha, a Mélinha, estás a ver, a que estuda no Porto, a filha da minha imã Lucília, disse-me que foi convidada para o casamento e que foi no Registo-Civil, coisa simples e sem arraial – diz Letinha, a beata preferida do padre da aldeia.
- Está bem, está bem, vai dar ao mesmo, casar pelo registo ou amantizar-se é tudo a mesma coisa, vai dar ao mesmo – insiste a Dona Fatinha, beata de créditos respeitados e insuspeitos nas questões de mexericos – a culpa é destes moços que vêm das áfricas meios malucos. Dizem que vêm apanhados pelo clima, cá por mim, é por causa das pretas, metem-se com elas e chegam malucos! Sorte teve o meu Zequinha, coitadinho, é um amor! Teve uma doença esquisita e o senhor abade livrou-o da tropa!
É um amor, o meu Zequinha!
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TELEFONEMA
§ A lista de Schindler.
- A Berta da loja veio dar o recado... disse que o Augusto telefonou e que vem este fim-de-semana a casa e vai estar cá uma semana… parece que vai mudar de quartel, mas a ligação não estava muito boa e a conversa ficou a meio.
- Se calhar vem para ir para a África, não?
- Ò mulher, vira para lá essa boca! O rapaz ainda não tem tempo para ir para fora. Está apenas há três meses em Santarém e ainda tem que ir tirar uma especialidade. Só depois é que pode ser mobilizado, mas eu já estou a dar umas voltas para o livrar da guerra. Tenho é que arranjar cinquenta contos!
- Cinquenta contos?! E onde vais arranjar tanto dinheiro? E quem conheces capaz de livrar o nosso filho?
- Olha, o dinheiro não vai ser problema. Se for preciso, vendemos a cavada dos Aguins. Só em madeira fazemos 20 contos e trinta, vale bem a cavada. Quanto ao resto... deixa comigo. O meu irmão de Aveiro conhece muita gente!...
Este preocupado diálogo é entre João Marques e sua mulher Rosalina dos Carvalhos, pais do nosso Augusto Marques, que em Santarém dá o corpo ao manifesto, preparando-se para o que der e vier.
- O mais certo é mesmo irem todos para África. Pelo nosso filho, fazemos qualquer sacrifício – podia ouvir-se na casa de João Marques ou noutra qualquer, onde houvesse filho na tropa e tivessem posses para o livrar da guerra. Posses de dinheiro ou de valores.
- Da tropa não o livro, é quase impossível. O melhor é irem pelos pedidos dos padres, têm mais influência. Mas da guerra? sim, de certeza que o livro, conheço gente importante, que por cinquenta contos livra o teu filho da guerra.
Isto mesmo disse, dizia, por entre-dentes, o menino Arnaldinho da menina Luisinha, homem solteirão a caminho dos cinquenta, putanheiro e punheteiro a tempo inteiro, jogador com vício de casino nas horas vagas e chefe de repartição no governo-civil, nas horas de receber salário. Era uma figura respeitável, O Menino. Filho da senhora Maria Luísa, a Luisinha do Prior como era conhecida, ou simplesmente a Luisinha, como também carinhosamente era chamada pelas gentes da aldeia. Senhora na casa dos sessenta, mais perto dos setenta, passou grande parte da sua vida como criada do Prior. Era criada residente e a tempo inteiro e ao que parece, para todo o serviço. Não conheceu casamento e também não se lhe conhecia o pai do seu Arnaldinho. Um dia, perto dos vinte, moça viçosa e de boa aparência e olhar tímido, pegou na trouxa e abalou para a terra. O senhor Prior disse na missa que a Luisinha tinha adoecido e tinha ido para a terra para se pôr boa. Um ano depois, regressou à aldeia e com ela, trazia nos braços o seu Arnaldinho. Diziam as más-línguas que era a cara chapada do Prior. O Menino cresceu neste santo ambiente e, na idade de aprender as primeiras letras, desapareceu por completo da aldeia.
- Está a estudar. – dizia Luisinha.
Alguns anos mais tarde, por altura da Páscoa, apareceu de saias, já moço, bem parecido, ainda mais parecido até no andar com o senhor Prior e a puxar a libido às moças da terra.
- Então, o teu menino é quase padre? Está um belo homem! Que desperdício! – diziam as amigas mais próximas.
- Oh... ainda tem muito que estudar, ainda lhe faltam uns anitos, só tem dezoito anos e antes dos vinte e um, vinte e dois, não se ordena, mas vai ser um bonito padre, disso tenho a certeza.
No ano seguinte voltou novamente pela Páscoa e de novo vestido de batina e até fez sermão na missa!
- O rapaz tem jeito, parece um pregador – diziam envaidecidos os gentes da aldeia. - A terra vai ter um pregador famoso!
No ano seguinte do seguinte voltou à terra, agora sem sotaina e sem colarinho branco, mais moço, mais alto e ainda mais bonito, no dizer da Lindinha das Vessadas, moça da idade de Arnaldinho e sua companheira nas primeiras brincadeiras de criança ao senhor doutor. Não mais saiu da terra, O Menino. Só para passear. Por altura da inspecção militar, apareceu-lhe uma doença qualquer, complicada, coitado, e o Senhor Prior tratou-lhe do atestado médico com carimbo e selo branco e ficou livre da tropa. Empregou-se no governo-civil e hoje, chefe de repartição, aguarda a sua promoção a director.
Vemo-lo então, com toda a cautela a elaborar a lista de Schindler por cinquenta notas, coisa pouca para tão importante missão; A de livrar da guerra os filhos queridos das boas famílias!
- Por cinquenta contos, livro o teu filho da guerra – repetia em voz baixa, olhando para os lados, abeirando-se cautelosamente do potencial cliente à saída da missa.
- Sabes como é João, são várias as pessoas na coisa e um bocado a um, outro bocado a outro, lá se vai o dinheiro todo e esta gente está habituada a viver bem – rematava com ar desinteressado. - Então o teu filho está em Santarém? Fui eu mesmo que lhe entreguei as Guias de Marcha. Para ele e para o estudante, o António Daborda. Mas esse já está em Lamego num curso qualquer para malucos.
- Sim, o Augusto está em Santarém – disse o senhor João – parece que acabou agora a recruta e vem este fim-de-semana.
- E olha que vai bater com os costados em África – disse o Arnaldinho – aquilo por lá está bastante azedo, os jornais não falam, escondem a situação, mas eu é que sei.
Era isto mesmo que o tijoão estava a dizer à sua mulher Rosalina. Que estava a dar umas voltas para livrar o rapaz. Só não contou todos os pormenores, devido à delicadeza da coisa. O que mais lhe recomendara Arnaldinho, é que não comentasse com ninguém, muito menos com a esposa, mulher por quem ainda nutria em silêncio uma certa fantasia vinda do namorico envergonhado de adolescente e que aos quarenta e tais, a caminho dos cinquenta, ainda não tinha esquecido o quanto lhe mexia com a libido:
- Não contes nada à Rosalina, senão ainda acabamos com a pide às pernas e olha que esses tipos não são flor que se cheire – recomendava Arnaldinho, conhecedor das artes da polícia que actuava à civil – sabes como são as mulheres, não guardam segredos de nada!
